Meu inseto monstruoso de Kafka

7/1/2022

gray praying mantis micro photography
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Eu também tenho meu inseto monstruoso de Kafka.

Quando concebemos nossa filha, há quase 20 anos atrás, sabíamos que uma criança seria algo de muito intenso, principalmente nas questões de amor.

E foi. O maior amor que podemos sentir, exercitar e aprender é o amor a um filho. No caso, filha.

Bebês e crianças são a coisa mais maravilhosa que existe.

Menininhas, então, são amorosas e tudo de bom.

São anos incríveis e experiências incríveis que nos fazem viver a vida com muito mais valor e intensidade. A viva passa a valer muito à pena.

Aprende-se de fato o valor da família.

Só que, nem tudo são flores…eles crescem…

Alguém já falou da adolescência? Pois é, é pior do que a gente pensa.

É claro, todos fomos adolescentes e temos uma vaga lembrança dessa entorpecida e inebriante fase. Todos viramos monstrinhos na adolescência.

Mas o que nem todos sabem é que, hoje em dia, os adolescentes sofrem uma Metamorfose muito, mas muuuito mais intensa do que há pouco tempo atrás. Se antes as crianças viviam correndo por aí e subindo em árvores, hoje vivem em casa atrás de alguma tela tecnológica.

Se antes a metamorfose dos adolescentes era intensa, hoje é assustadora.

De “monstrinhos" foram elevados à condição Kafkaniana de “insetos monstruosos”.

Eu tenho o meu inseto monstruoso. Ela é minha Gregor Samsa.

Um dia, não tão “de vereda” como no livro, me vi com um inseto monstruoso em casa. Mais precisamente no quarto de minha filha e, minha filha, havia se ido.

Já não era saudável, não era mais desejável entrar em seu quarto. Cheiro, iluminação, desordem, ações e reações estranhas, som estranhos (para não dizer grunhidos)…enfim, o quarto dela se tornou um ambiente inóspito e evitável.

Tal como em Kafta (me desculpem, estou com fome), já não era possível entender o que ela falava nem seus movimentos e desejos. Era tudo meio perigoso.

Comida pelo canto da porta, um gancho para alcançar as roupas sujas num canto do quarto, procurando não encarar e, caso os olhos se cruzassem, rapidamente olhar para baixo em atitude de submissão…enfim, estratégias para lidar com o inseto monstruoso.

A história não é boa, e certamente, hoje em dia, se repete em praticamente todos os infelizes lares.

Mas, diferente do que o leitor pode ser levado a crer, não escrevo isso para assustá-lo ou mesmo para apresentar um cenário derradeiro e definitivo como em Kafta (ainda com fome). Não, longe disso. De fato, e por sorte, temos um final hollywoodiano. A coisa acaba bem.

Há uma redenção.

A adolescência termina e os transforma de volta daquela criatura repugnante e assustadora para nossos filhos. Bem, geralmente não totalmente, mas definitivamente há a “metamorfose reversa” e isso é uma boa notícia.

A de minha filha está em fase quase final de mutação reversa e, como era de se esperar, já está claro que não será mais o que era.

Como estou vivendo o meio do processo de re-transformação, não posso descrever o total da experiência, mas dizem que alguns filhos congelam sua metamorfose retroativa em algum % que os faz manter alguma característica do inseto monstruoso que foram. Isto é, parte do inseto que eles foram vai fazer parte de seu filho inevitavelmente. É ruim, mas é isso.

Portanto, e esta é uma importante conclusão, Kafka (tô satisfeito) criou uma narrativa perfeita no comportamento da família de Gregor. Todos, desde o primeiro segundo, aceitaram e conduziram a vivencia com o inseto. Não só suportaram, mas aprenderam a conviver da melhor forma com o inseto. Nunca foi uma questão do porque seu filho se tornou “aquilo” e nem se questionaram se deveriam ou não lidar. Eles simplesmente fizeram o melhor que puderam e aguardaram.

Lá, no livro, o pobre inseto morre inseto, já em nossas casas temos o privilégio da re-transformação. Temos a sorte da “metamorfose reversa” e ela ser garantida de fábrica, não suscetível aos erros dos pais, à criatividade do escritor ou ações de quem quer que seja.

Eles, os filhos, voltam.

E se, inevitavelmente voltam, o melhor que podemos fazer é lidar com a Metamorfose, convivendo o melhor possível.

Everything's gonna be alright.

O fato é que Kafka, ao escrever A Metamorfose, decidiu terminar o livro tragicamente. Foi proposital. Ele queria “lacrar”.

No fundo ele sabia que teria mais audiência e mais cliques se não terminasse de forma óbvia.

Malandrinho…

Porto Alegre, junho de 2022